Episódio I - Abel e a ideia maravilhosa.
O sol espalhava as sombras para poente.
Abel, ainda não se tinha deitado. Fora uma longa noite em branco, no mais dos escuros momentos da sua vida.
Abel era um mero funcionário público, há cerca de 20 anos no Ministério. Fazia o essencial e ponto. Picava o ponto e ponto final. Um ponto final, foi o que lhe quiseram pôr na carreira.
"Ou trazes uma boa ideia, amanhã, ou vais para a lista dos disponíveis" disse-lhe o chefe.
Não queria acreditar no que estava acontecer...depois de tantos anos de dedicação e tantas boas pontuações no Tetris, era assim que o chefe o tratava?
Pois bem, fosse como fosse, era o que tinha de fazer...Uma missão... Ter uma ideia!
Mas como?...Abel, embora não fosse parvo, usara tão pouco os neurónios, que ainda traziam o plástico que os embrulhava. Nessa noite em casa, sentiu-se deprimido. Muito, mesmo muito. Ao fazer zapping, pelos canais impróprios para as mentes sãs, deparou-se com um programa de culinária.....
Era um programa sobre enchidos tradicionais, das mais variadas regiões do nosso belo País....Alheiras, chouriços, farinheiras, morcelas...
Morcelas?
Abel saltou do empenado sofá e correu ao armário das tretas de praia para onde atirara tudo das férias de 1985.
Vasculhou na imensidão de porcarias e regressou à sala com um insuflável, com a representaçao da Terra. Apressadamente, soprou o mais que pode até o encher. Pousou-o sobre a mesa.
Ficou a olhar para aquela Terra cheia de ar, com a imagem da morcela na memória. Assim ficou horas, até o Sol lhe atirar a manhã à cara.
Ensonado, mas feliz, apanhou o 47, antes de ser apanhado em falta, pelo chefe....
Eram exactamente 12 horas, quando o chefe entrou, a queixar-se do trânsito, e de que este País não ia a nenhum lado...nada mais do que o habitual...
Abel, olheirento, mas feliz, bateu levemente na porta do gabinete do chefe.
"Chefe, podemos conversar?"
"Abel, só se for rápido, porque tenho de ir almoçar"
O chefe era um inútil da mais fina estirpe. Subira pelo tempo de permanência nas folhas de pagamento, e não pelo tempo a trabalhar. Aliás, a única pessoa que se lembra de o ver fazer algo importante, já se tinha reformado há muito tempo. Dizia-se que o chefe tinha mais horas de atraso do que de vida...
Mas, o sr. Santos era mais conhecido pelo Sandes, derivado ao peculiar facto de adorar couratos no pão. O personagem espalhava-se tanto na vertical, como na linha do horizonte. Melhor dizendo, era pouco menos que uma esfera com mãos e sapatos fora de moda. No escritório diziam "Se o Sandes tropeçar no Princípe Real, acaba a boiar no Tejo"...
Acedeu a fazer uma reunião com o Abel. Era uma coisa que os Srs. Drs. faziam muito. Só lhe ficava bem...
“Então conta, Abel.." disse ele cruzando os dedos
"Imagine que me ocorreu algo incrível"
"O quê?” , perguntou o Santos. “Conseguiste escrever o teu nome sem te enganares?" Risos...por parte do Santos
"Não, Sr. Santos, nada disso”, retorquiu o Abel….”Tive a tal ideia que me pediu"
"Que ideia, pá?"
"A de uma coisa para apresentarmos ao Sr. Ministro, para promover a nossa imagem, a imagem do nosso País, internacionalmente"
"Ó, Abel...olha que o Sr. Ministro, é Dr. e Pré-Licenciado, desde 1979 e é uma pessoa que fala com Engenheiros e outros estudiosos"
Era verdade, ao Ministro só lhe faltava falar...entre outras coisas, do seu afastamento, mas isso era coisa que não fazia intenção...
"Eu sei", disse o Abel, "mas isto, é uma ideia que nos vai fazer ficar na história"
Ora bem, na pequena “cabacinha” do Santos, isto soava a promoção, gabinetes remodelados, ar condicionado, secretárias giraças e boas.
"Conta. Tenta ser rápido poruque tenho de ir almoçar com o Peres"
Abel, cheio de si, põe em cima da mesa uma morcela e começa a encher o insuflável com a imagem da Terra.
"Aqui esta a ideia!"
A expressão na cara do chefe, era como o interior dum pneu de tractor vazio.
"Olha lá, Abel,...a morcela compreendo, porque estamos na hora do almoço, uma garrafa de tinto, fazia sentido, mas...um balão? Os Santos populares ainda estão longe, pá!"
Dos Santos populares, era coisa de que o chefe não fazia parte.... Confiante, Abel continuou.
"Tente ver isto..." disse ele fazendo mistério da ideia que ia apresentar.
"Há uma coisa comum entre estes dois…coisos"
"DIZ, PORRA! Não tenho o dia todo, e estou com fome!"
Abel tremeu como um actor que tem uma “branca” em palco e apenas bolsou:
"Um MERIDIANO!"
Silêncio total...